14 de jun. de 2010

Milho cozido - Carlos Drummond de Andrade


A primeira vez que eu vi alguém na rua comer milho cozido, confesso que me espantei. A segunda, não estranhei tanto. A terceira, tive tentação de pedir-lhe: Desculpe, moça. Posso provar um tiquinho? Porque era moça, por sinal bem apanhada. Não pedi infelizmente. Ou felizmente, porque ela não só me recusaria o pedido como poderia mesmo estranhá-lo, achando-me atrevidão. Refleti logo como havia entre nós a distância infinita de algumas gerações, pois ela fazia o que eu gostaria de fazer e não tinha coragem, nem mesmo nunca pensar nisso: saborear na rua uma tentadora espiga de milho verde.

E daí, quem sabe se toparia? Garota moderna, desinibida, comendo quando lhe apetecia, natural que compreendesse o desejo de alguém, despertado pela visão do milho bom de comer. Se não topasse, a distância entre nós não seria tão grande assim; apenas moça preconceituosa, incapaz de compreender que minha intenção era simplesmente provar do milho, e não arranjar pretexto para aproximação, com fins obscuros e suspeitos.

Embaraçado, limitei-me a olha-lo com o rabo do olho, pois íamos no mesmo frescão, ela ao meu lado, e era impossível não tomar conhecimento daquele pausado e delicado comer um milho um que vinha de antiqüíssima fazendas da minha lembrança...um milho tão recuado , tão perdido em brumas do século, sem mais nem menos viajando comigo naquele ônibus, trincado pelos dentes da moça, que o comia com muita desenvoltura e ao mesmo tempo com muita classe.

Ela é claro, nem se dignava tomar conhecimento de mim, com essa faculdade admirável que têm as mulheres de estarem ausentes na mais indubitável presença. E dava uma mordidinha e parava e recomeçava, atenta ao ritmo e às boas maneiras. Nada mais natural, mais civilizado, sem gula ostensiva, sem provocação aos últimos defensores da teoria de comer num coletivo é falta grosseira de “berço”.

A espiga consumia-se. Eu sempre com vontade de provar, e mudo e quedo na minha inibição. Não tinha olhos de cão pedinte, não ousaria tanto, mas comecei a duvidar da inteligência e do coração da moça. Então ela não via que a seu lado estava um senhor carente e desejante de comer daquele milho, e que lhe custaria renunciara uns poucos grãos, para satisfazer tão humilde carência? Eu era um desconhecido, sim, mas o desconhecido deixa de sê-lo a um rápido olhar de benevolência e duas ou três palavras reveladoras.

Só em Botafogo me ocorreu que podia repugnar-lhe a idéia de a espiga passar por duas bocas. Em Copacabana, perto de dois terços de espiga tinham-se desnudado; no Leblon terminaria a refeição, pelo esgotamento da peça. Não pude deixar de admirar a competência da moça, que nem se atrasava nem se afobava. Parecia até que um cronometrara o ato de comer pela duração da viagem de ônibus. Se morasse em São Conrado, destruiria duas espigas? O fato é que degustava calma e delicadamente o glúten, o amido, as proteínas, ou, para falar verdade, o sabor da mistura, sem identificação de elementos. O milho deixava-se papar, talvez agradecendo a delicadeza com que era papado. Escapara do carrinho do vendedor ambulante para cair nos dentes de uma bela moça egoísta que nem sequer se lembrava de que pertinho dela um senhor de origens rurais passara a ter subitamente imperiosa necessidade de comer milho verde, milho assado, milho cozido, qualquer variedade ou modalidade de milho, e elas são milhares...

Ah! Por que não fiz o que era tão fácil fazer, passar na carrocinha e comprar a minha espiga, mostrar á moça que também eu apreciava essa comidinha despretensiosa e amável? Mas como, se eu não tinha, minutos antes, a menor tentação de comer milho, e só sentira ao ver a moça? Seria autêntica essa tentação, ou eu me comportava como reles imitador de gestos alheios, sem correspondência com a massa dos meus gestos habituais, normalmente programados? Na dúvida, arrisquei-me a olha-la sem cerimônia, direto, quase provocador. Não deu sinal de perceber minha indiscrição. Comendo estava, comendo continuou, na mesma toada E o milho acabando. E eu sentindo que a essa altura já não adiantava pedir nada em troca. Na melhor hipótese me estenderia o sabugo despojado, com um ou dois grãos de sobejo, irônicos. E já ia passando minha vontade de comer aquele milho daquela espiga, Deus (ou o Diabo) sabe lá por quê. Em vão procurava me iludir, pensando num milho anônimo, genérico, universal. Se a moça retirasse da bolsa outra espiga e a oferecesse à minha gula, não apeteceria. Aquela é que despertara em mim o desejo manducativo, ligado a fortes e escondidas subjacências temporais. A moça desceu antes de mim, depois de embrulhar cuidadosamente o sabugo em papel fino e guarda-lo na bolsa. Continuei, já agora de estômago saciado. Eu comera toda a espiga de milho.

Carlos Drummond de Andrade

Feliz São João!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!